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Implantação da política antimanicomial no sistema carcerário baiano foi tema de debate no MP
A necessidade de uma atuação transversal, intersetorial e interdisciplinar foi apontada como um dos desafios para se implantar na Bahia a política antimanicomial no sistema prisional, com base na Resolução 487 de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante o ciclo de debates ‘Política Antimanicomial no Sistema Carcerário: Desafios e Perspectivas’, realizado ontem, dia 5, no Ministério Público estadual, em Salvador. Organizado pelo Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde (Cesau), em parceria com Centros de Apoio Operacional Criminal (Caorcim), da Criança e do Adolescente (Caoca) e de Segurança Pública e Defesa Social (Ceosp), o evento foi aberto pela procuradora-geral de Justiça Norma Cavalcanti, que salientou os desafios de enfrentar o tema. “É um problema que envolve desafios, mas deve ser enfrentado. Devemos aperfeiçoar a atuação nessa área, inclusive aprofundando a resolução do CNJ, por meio de uma discussão mais ampla com o MP e com os atores do sistema de Justiça”, afirmou a PGJ, relatando que o tema vem sendo discutido em instâncias como o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG).
A coordenadora do Cesau, promotora de Justiça Patrícia Medrado, destacou que eventos como esse enriquecem o diálogo sobre o tema e são importantes para agregar informações sobre diversos aspectos relacionados à efetiva implantação da política antimanicomial. “A temática da saúde mental carrega múltiplas perspectivas e é transversal a várias áreas do saber científico e jurídico, e precisa estar presente nos espaços de criação e discussão de políticas públicas, sobretudo diante do surgimento crescente dessas demandas”, afirmou. Também participaram da mesa de abertura os coordenadores do Caocirm, Caoca, Ceosp e da Unidade de Monitoramento e Execução da Pena (Umep), respectivamente promotores de Justiça André Lavigne, Ana Emanuela Rossi, Luís Alberto Vasconcelos e Edmundo Reis.
A medida de segurança e a custódia preventiva, conforme a resolução 487, foram o norte da apresentação da promotora de Justiça Renata Goya, do Ministério Público do Mato Grosso do Sul. A promotora, que é colaboradora da Comissão do Sistema Prisional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), abriu sua fala citando o Relatório Mundial sobre Saúde Mental, apresentado em 2022 pela Organização Mundial de Saúde, que pede uma atuação mais proativa por parte dos tomadores de decisão e defensores da saúde mental. “O relatório pede que nós intensifiquemos o nosso compromisso e ação para mudarmos atitudes, ações e abordagens à saúde mental”, afirmou, destacando que, especificamente no que tange ao tratamento dos custodiados com problemas de saúde mental, é preciso superar o tratamento asilar, substituindo os modelos de internação pelos de serviços comunitários. Ela pontuou que a resolução do CNJ pede que o juiz competente para a execução das medidas de segurança, sempre que possível, busque implementar políticas antimanicomiais. “A resolução não inova, nem legisla. Na verdade, apenas cobra o cumprimento do que a legislação já previa desde a Lei 10.2016 de 2001, há mais de 20 anos”,
salientou. A promotora chamou atenção aos prazos previstos na norma. “Desta vez, até mesmo por conta do não cumprimento da legislação de 2001, a resolução prevê que, em seis meses contados da sua publicação, as autoridades judiciais competentes determinem a interdição parcial de estabelecimentos, alas ou instituições de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil e que passe a proibir também novas internações, promovendo, em até 12 meses, o fechamento e a interdição total dessas instituições”, frisou.
Participante do mesmo painel, a assessora do CNJ Melina Miranda citou casos práticos que embasam a necessidade da resolução. “Hoje, fazemos cursos sobre a temática e apresentamos a resolução, que apenas orienta o cumprimento de normas já existentes, apontando procedimentos ao Poder Judiciário para que a legislação já existente seja efetivamente cumprida”, disse. Ela ressaltou o papel dos promotores de Justiça na audiência de custódia dos casos que envolvem acusados com problemas de saúde mental. “Precisamos da atuação do Ministério Público, na sua área de atuação finalística, como parceiro no processo de fechar a porta de entrada, impedindo que mais detentos ingressem nos sistemas de internação compulsória. É uma política que exige coragem de todos nós para confrontar uma situação que já se estabeleceu culturalmente, porém se configura um erro grave, que é a custódia desses detentos, de forma compulsória, em unidades psiquiátricas, das quais, muitas vezes, mesmo vencidas suas penas, eles não conseguem sair”, afirmou. “Nosso desafio é trabalhar em rede e evitar problemas como a transinstitucionalização, que faz com que um paciente saia de uma instituição como um Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) e seja transferido para outra instituição de caráter igualmente asilar e compulsório”, concluiu Melina Miranda. A mesa teve como debatedora a promotora de Justiça Márcia Munique de Oliveira.
“A busca do justo, propósito maior, como bem salientou a procuradora-geral, exige coragem”, afirmou a consultora da Organização Panamericana de Saúde, professora-doutora Ana Maria Fernandes Pitta. A psiquiatra afirmou que ver esse debate feito de forma interdisciplinar, envolvendo saúde, segurança pública, infância e adolescente, além da seara criminal propriamente dita, é “esperançoso”. Esse ciclo de debate sinaliza uma busca pelo melhor para o paciente, pois não estamos falando aqui apenas dos que cumprem pena, mas também, e sobretudo, daqueles que já as tendo cumprido permanecem institucionalizados por falta de políticas públicas, e mesmo de unidades adequadas, para que seja feita sua transição do sistema asilar para os seio familiar, para o retorno ao convívio social”, afirmou. “É preciso que se tenha em mente que a doença mental em si não é um crime e que não cabe a ninguém, nem mesmo a um magistrado, inferir se alguém poderá ou não cometer um crime no futuro, até porque, se assim o fosse, estaríamos todos nós, seres humanos falíveis, detidos preventivamente”. A mesa teve como debatedora a promotora de Justiça Andréa Ariadna.
As estratégias em saúde mental para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) no Estado da Bahia e sua interface com a Resolução 487 do CNJ foram o tema da apresentação da diretora de Gestão do Cuidado da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), Liliane Mascarenhas Silveira. A diretora explicou como funcionam os Centros de Atenção Psicossocial Especializada (Caps), destinados ao atendimento de pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, bem como aos pacientes que necessitem atendimento em decorrência do uso de crack, álcool ou outras drogas. Ela apresentou também o funcionamento das Unidades de Acolhimento (UA) e dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Liliane Mascarenhas destacou a importância do retorno à convivência com a família para os pacientes psiquiátricos. “Temos na Diretoria de Gestão de
Cuidados (DCP) o ‘Programa Volta pra Casa’, que se propõe a auxiliar a reabilitação psicossocial e se destina às pessoas acometidas de transtornos mentais com histórico de internação de longa permanência, a partir de dois anos ininterruptos em hospitais psiquiátricos ou de custódia”, afirmou ela. Dentre os desafios enfrentados pela DGC, a diretora destacou a necessidade de estabelecer um plano de ação para efetivar a desinstitucionalização e a instituição de comissões de revisão e acompanhamento de processos como a internação voluntária e monitoramento de serviços de residência terapêutica. “É preciso estruturar adequadamente todo o fluxo assistencial das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei”, concluiu.
Descritos como unidades que “reúnem o que há de pior nos asilos psiquiátricos com o que há de pios no sistema prisional”, os hospitais de custódia foram apontados pelo coordenador geral de Desinstitucionalização e Direitos Humanos do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, João Mendes Lima Júnior, como instituições que “precisam ser extintas”. “Esse é um tema central para nós no Ministério da Saúde, onde estamos buscando construir uma resposta contemporânea ao tratamento psiquiátrico, pois não podemos admitir que, com os avanços civilizatórios que já temos, continuemos tratando os pacientes psiquiátricos em conflito com a lei da mesma forma que eles eram tratados há mais de dois séculos”, pontuou, salientando que os modelos asilares precisam ser superados. “É preciso recompor uma sensibilidade social e promover uma mudança cultural. Precisamos mudar a chave na maneira de tratar pessoas com problemas psiquiátricos e a resolução do CNJ pode ser o impulso que faltava para a indução de novas políticas públicas”, chamou a atenção João Mendes.
Lançamento
O evento foi marcado ainda pelo lançamento da campanha do ‘Projeto Saúde Mental: Integração e Dignidade’, do Cesau. Apresentado pela coordenadora do Centro, promotora de Justiça Patrícia Medrado, o projeto tem como principal objetivo o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no estado da Bahia, por meio da instrumentalização e capacitação dos membros e servidores na temática da saúde mental, bem como com ações de fomento à implantação e implementação da Rede nos 417 municípios baianos. Nas suas diferentes fases, o projeto irá capacitar promotores e servidores, fornecendo instrumental para fortalecimento da atuação finalística; estabelecer um cronograma de Inspeções na RAPS para realização de diagnóstico; e elaborar Orientações Técnicas, Notas Técnicas, Recomendações e demais materiais de apoio visando a reestruturação da Raps nos municípios, de acordo com informações específicas. Em concomitância com todas as fases, será realizada campanha publicitária com vistas à orientação e conscientização do público sobre a temática da saúde mental. A campanha, composta por peças audiovisuais de divulgação nas redes sociais e nos demais meios de comunicação do MP foi apresentada pela promotora de Justiça. O promotor de Justiça Ricardo Menezes, um dos gerentes do projeto, também participou do evento.